Aforismos de uma Insana Sensatez


Não era dada a recordações. Passava com a sutileza de um trator por cima do que, de alguma forma, lhe provocasse algum desconforto. Ela era uma caixa cheia de gavetas. Algumas trancadas sem nunca terem recebido uma visita sequer. Gavetas empilhadas, cheias de memórias e histórias que não podiam ser tocadas. Talvez por algum breve instante pressentisse a presença delas. Mas isso era tudo o que conseguia a respeito. Pressentir vez ou outra a existência delas. E caminhava a passos largos, espinha ereta e aos olhos alheios, quase que intocável pelas mazelas que a vida sempre fez questão de lhe presentear. Tudo a sua volta ruía e ainda assim, a espinha não se dobrava. Sabia sorrir como ninguém. E nos sorrisos deixava transparecer um insólito desejo. Uma vontade louca e inquietante de ir além do óbvio, do suposto, do já estabelecido. E até por isso, quem sabe, as tais gavetas permaneciam fechadas. Memórias são obvias demais, emperram os passos, apertam os laços. E se algo havia o qual lhe parecia insuportável, era a falta de movimento. Laços prendem e ela nunca se renderia à eles. Tinha um senso de percepção bastante aguçado e podia com certa facilidade saber de antemão o que permaneceria e o que iria parar nas tais gavetas, para de lá nunca saírem. Na vida, pensava ela, cada ser encerra em si o que é capaz e incapaz de suportar. "A insustentável leveza do ser" nada mais era do que apenas insustentável e nada havia de leve. Passava os dias metamorfoseando  oque quer que lhe aprouvesse, tão docemente, que felicidade não lhe era um sentimento incomum. As tais gavetas? Permaneceriam da forma como sempre foram.

Elzinha Coelho

Nota: A Insustentável Leveza do Ser (Milan Kundera)  Sobre este romance, Italo Calvino escreveu: "O peso da vida, para Kundera, está em toda forma de opressão. O romance nos mostra como, na vida, tudo aquilo que escolhemos e apreciamos pela leveza acaba bem cedo se revelando de um peso insustentável. Apenas, talvez, a vivacidade e a mobilidade da inteligência escapam à condenação -- as qualidades de que se compõe o romance e que pertencem a um universo que não é mais aquele do viver"

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